A crescente popularidade de rotinas de cuidados com a pele, conhecidas como skincare, impulsionada por tutoriais em redes sociais para crianças, gerou um alerta na comunidade médica. Especialistas em dermatologia pediátrica e endocrinologia advertem que a exposição de crianças a componentes químicos presentes em cosméticos formulados para adultos pode acarretar sérios problemas de saúde, desde dermatites e alergias até potenciais desregulações no sistema endócrino.
A pele infantil, substancialmente diferente da adulta em estrutura e função, é o principal ponto de vulnerabilidade. Mais fina e com uma barreira cutânea - o manto hidrolipídico - ainda em maturação, ela é menos eficaz na proteção contra agressores ambientais e na retenção de umidade. Consequentemente, é mais permeável à absorção de compostos químicos.
"Essa moda de skincare em criança não é saudável. Temos visto meninas bem jovens, de 10 anos, que chegam no consultório usando cremes aleatórios que conhecem pela internet, e muitas vezes com prejuízos para a pele", diz a dermatologista Patrícia Dalboni.
Antes da puberdade, a reduzida produção de sebo pelas glândulas sebáceas também torna a pele infantil mais suscetível ao ressecamento. Essa imaturidade funcional facilita a penetração de ingredientes de produtos tópicos em maiores concentrações, abrindo caminho para substâncias como ftalatos, parabenos e outras substâncias químicas que interferem no sistema endócrino e na função hormonal, conhecidas como disruptores endócrinos.
RISCOS DERMATOLÓGICOS PARA CRIANÇAS
A dermatite de contato é uma das consequências mais frequentes do uso inadequado de cosméticos na infância. Pode manifestar-se como irritativa, pelo dano químico direto à pele, ou alérgica, como resposta imunológica a um alérgeno específico após sensibilização. "Pode acontecer de a criança desenvolver alergias a esses produtos", reforça Dalboni.
Além das dermatites diagnosticadas, irritações gerais como vermelhidão, coceira, ardência, descamação e sensação de repuxamento são comuns. Mesmo produtos rotulados como "suaves" ou "hipoalergênicos" podem causar problemas se contiverem ingredientes inadequados ou se usados excessivamente.
Outro prejuízo, segundo a dermatologista, é a alteração da barreira cutânea estável da criança. "Ao começar a usar produtos estéticos, pode haver uma alteração dessa barreira cutânea. Com isso, a pele fica mais suscetível a pegar infecções, a perder um pouco da proteção."
O uso de produtos comedogênicos, que obstruem os poros, como certos óleos e hidratantes densos, pode levar à acne cosmética, com surgimento de cravos e espinhas. A dermatologista relata um caso recente: "Uma paciente de 10 anos veio ao m eu consultório com milium no rosto, uma bolinha de gordura. Comentei com a mãe que isso é comum em adolescentes que usam produtos que veem na internet, e ela me respondeu que ela usava isso todos os dias. Em vez da pele dela ficar boa, estava criando lesões."
DISRUPTORES ENDÓCRINOS E IMPACTOS HORMONAIS
A preocupação mais grave, no entanto, reside na disrupção endócrina. Substâncias químicas com atividade hormonal podem interferir no delicado equilíbrio do sistema endócrino infantil. "Os componentes presentes no skincare que interferem no sistema endócrino são chamados de disruptores endócrinos", explica Flávia Jasmim, endocrinologista pediátrica. "São substâncias químicas que, ao serem absorvidas pelo nosso organismo, enganam o nosso corpo como se fossem hormônios."
Entre os vilões, Jasmim cita "o parabeno, o petrolato, o chumbo, o formol e o alumínio". A exposição a esses componentes durante fases críticas do desenvolvimento pode estar associada a desfechos adversos na saúde reprodutiva, metabólica e neurológica.
"Ademais, existem os chamados disruptores endógenos, substâncias que são usadas em muitos produtos de beleza que podem interferir no sistema endócrino e hormonal da criança, causando possíveis alterações. Como o ciclo menstrual pode ser precoce ou atrasado, e pode repercutir ao longo de toda vida", complementa Patrícia Dalboni.
Jasmim detalha que, no contexto do skincare, esses elementos "são os mais conhecidos que podem ter essa ação hormonal, principalmente associada à puberdade precoce". A puberdade em meninas é esperada a partir dos 8 anos. O surgimento de pelos, crescimento das mamas ou acne axilar antes dessa idade, e antes dos 9 anos em meninos, são alertas para uma possível puberdade precoce, que pode ser influenciada por esses disruptores. Ganho de peso exagerado e alterações na pele (ressecamento ou oleosidade excessiva) também são indicativos.
IMPACTOS DA ADULTIZAÇÃO PRECOCE
Para a psicóloga Ana Mussel, o uso precoce de redes sociais gera preocupação com a imagem, com a popularidade e as curtidas em postagens, que restringem a criança de vivenciar etapas importantes do desenvolvimento social, pessoal e criativo. "É um período essencial para formarem autoestima, autonomia, criatividade. Quando colocadas sobre esses padrões estéticos, isso pode acabar sendo prejudicial para a formação da identidade", diz.
"A criança a a viver para agradar os outros em vez de se desenvolver livremente. O uso das redes sociais precisa ser limitado e mediado por adultos. Precisamos preservar a saúde mental e principalmente o direito da criança em viver uma infância", conclui a psicóloga.
CUIDADOS ESPECIAIS
Existem, contudo, condições específicas em que produtos de skincare são necessários, sempre sob orientação médica. Dermatite atópica, acne na pré-adolescência (que pode surgir entre 10 e 12 anos com as mudanças hormonais), pele excessivamente seca (xerose cutânea) e outras dermatoses como psoríase, exigem diagnóstico e tratamento individualizados.
"Para skincare especificamente, que seria o cuidado com a questão da qualidade da pele, a gente indica para a idade entre 10 e 12 anos, que é quando geralmente a criança já está em puberdade e pode ter um aumento da oleosidade, ficando com uma pele mais acneica, precisando de cuidados específicos", pondera Flávia Jasmin, ressaltando que "sempre deve ser acompanhado por um profissional competente". Produtos com retinol e ácidos, por exemplo, não são indicados para a faixa etária.
Para crianças mais novas, os cuidados básicos são suficientes. "Se vem uma criança procurando skincare, o correto a indicar é um sabonete suave adequado para criança, um creme hidratante e um protetor solar específicos para sua pele e idade", orienta a dermatologista Patrícia Dalboni. (GABRIEL VARGAS)