Tóquio, 2021. Os olhares de um mundo pandêmico se voltavam para a capital japonesa, sede dos Jogos Olímpicos. A atenção se dividia entre o medo pela realização do evento em meio aos casos da Covid-19 e a expectativa pela performance de Simone Biles. A ginasta estadunidense, favorita à medalha de ouro em todas as provas da modalidade, surpreendeu ao decidir abandonar a final por equipes. A justificativa era de que precisava cuidar do seu bem-estar. “Senti que estava numa prisão, da minha mente e do meu corpo”, disse a atleta no documentário “O Retorno de Simone Biles”, lançado neste ano pela Netflix. 

O episódio ocorrido com a ginasta estadunidense não foi um fato isolado nos Jogos de Tóquio. A tenista japonesa Naomi Osaka, responsável por acender a pira da Olimpíada durante a cerimônia de abertura, itiu ter sentido a pressão por resultados. Ela, que ocupava a segunda posição no ranking mundial, foi eliminada por uma atleta que estava em 42º lugar e perdeu a chance de conquistar uma medalha nos Jogos, disputados em casa.

Simone Biles e Naomi Osaka, duas atletas de alta performance e ícones em suas modalidades, trouxeram à tona, na última edição olímpica, a necessidade da atenção à saúde mental no esporte. “Esses casos provam que a vulnerabilidade não conhece fronteiras. Essas revelações servem como uma chamada à ação em setores em que o estigma persiste de maneira arraigada, como o esporte”, avalia a psicóloga esportiva, Letícia Capuruço.

Recentemente, um estudo realizado pela Academia Nacional de Medicina da França mostrou que entre 60% e 65% dos atletas têm problemas com o sono e que 68% já enfrentaram episódios depressivos. No Brasil, outra pesquisa, feita pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), indicou que três em cada dez esportistas do país têm sintomas leves ou moderados de depressão. O levantamento feito pela Universidade paulista foi realizado com 148 atletas e 106 treinadores, que responderam às perguntas anonimamente.  

“Os atletas sofrem pressão por todos os lados: família, amigos, clube, equipe, torcida e até mesmo a interna. É preciso cuidar do autoconhecimento, do manejo das emoções e das habilidades psicológicas para que estejam cada vez mais preparados para lidar com essas adversidades”, acrescenta Letícia.  

A pressão como adversário 

Durante a seletiva olímpica brasileira, disputada em maio, no Rio de Janeiro, um erro de estratégia na largada dos 400 m livre prejudicou a classificação do nadador Eduardo Moraes, do Minas Tênis Clube, para os Jogos de Paris. Ele, que é especialista na prova, teve um problema de insônia na noite anterior à disputa – algo que, segundo o atleta, pode ter sido ocasionado pelo maior tempo de polimento, que consiste na redução do prazo de treinamento.

“Com o excesso de energia, isso impactou o sono. Estava (fisicamente) preparado para a prova, mas, por causa do mental, o índice não veio (na seletiva)”, relata Eduardo. A insatisfação com o desempenho fez com que o nadador cogitasse desistir da competição. Contudo, após intervenção do seu treinador, ele voltou à piscina e assegurou a vaga olímpica no revezamento 4x200 m livre. “Se a mente não está boa, não há físico que aguente. Muitas pessoas acham que o atleta é 99% físico e 1% mental, mas na competição é o contrário", acrescenta. 

Após a seletiva olímpica brasileira, a prova de Eduardo, assim como fatores externos que podem ter comprometido o desempenho, foi analisada pelo treinador e por toda a equipe de auxiliares. Um mês depois, o nadador retornou à piscina no Troféu Settecolli, disputado em Roma, na Itália. Na competição, ele confirmou a vaga nos 400 m livre nos Jogos de Paris. Eduardo ficou em terceiro lugar, com o tempo de 3m46s29, abaixo do índice olímpico, que é de 3m46s78.

"A cobrança faz parte do esporte. Com os resultados negativos, é importante manter a cabeça fria e identificar onde precisamos melhorar – nas estratégias, nas questões físicas e também na mental. O mesmo vale quando temos sucesso. É preciso manter os pés no chão e ignorar toda essa expectativa externa, porque não tem ninguém que nos cobra mais do que nós mesmos”, destaca. 

Atletas: pessoas comuns ou super-heróis? 

Para a ex-nadadora olímpica Joanna Maranhão, essa condição de pressão a pela idealização do esportista como um "super-herói", que é concebido como um ser-humano isento de defeitos e falhas. Ela considera que esse processo implica na "desumanização dos atletas" e potencializa as frustrações. "O atleta de alto rendimento tem os holofotes sobre ele. Então, essa discussão precisa considerar também o quanto a expectativa do público e das pessoas no entorno pode aumentar a pressão. Ou seja, a humanização é algo essencial nesse debate", avalia.

Joanna Maranhão começou a lidar com essa pressão ainda aos 14 anos, quando ou a integrar a seleção brasileira de natação. Aos 17, ela estava na final olímpica dos 400 m medley da Olimpíada de Atenas 2004. A ex-nadadora também representou o país nos Jogos de Pequim 2008, Londres 2012 e Rio 2016. Apesar da sequência nos grandes eventos esportivos, ela interrompeu parte de sua carreira por traumas do ado e por desavenças com a Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA).

“Tudo isso me fez repensar em continuar. Mas foi nesse período que percebi que a razão para fazer esporte estava em mim. A gente lida com essa pressão potencializada, que infelizmente faz parte. É algo que vai além dessa cobrança que todos temos, que é a de ter uma boa performance no trabalho, de suprir a sua família, de relacionar”, diz.

Conforme o Ministério da Previdência Social (MPS), essa pressão cotidiana, seja na vida pessoal ou trabalho, faz parte de uma série de fatores que podem levar ao adoecimento psíquico, favorecendo diagnósticos de depressão, esquizofrenia, demência, entre outros. De acordo com a pasta, as alterações do estado de saúde têm sido cada vez mais comuns no país. Em 2023, foram 288.952 benefícios por incapacidade devido a transtornos mentais e comportamentais – quantidade 38% maior que os 209.137 concedidos em 2022.  

“O ambiente corporativo está sendo instigado com a importância de criar ambientes que promovam o bem-estar e ofereçam recursos para lidar com o estresse. No esporte, o que estamos começando a ensinar aos atletas e treinadores é que o resultado esportivo não precisa ser a qualquer custo”, aponta a psicóloga esportiva, Letícia Capuruço. 

Quando traumas se tornam públicos 

A Olimpíada de Tóquio foi uma das primeiras competições da ginasta Simone Biles após vir à tona uma série de denúncias envolvendo o ex-médico da seleção norte-americana de ginástica, Lary Nassar. Em 2018, três anos antes dos Jogos, ele havia sido condenado a 175 anos de prisão pelo abuso sexual de atletas. Um mês após a competição na capital japonesa, Simone Biles revelou ter sido uma das vítimas.

“As cicatrizes desse abuso terrível continuam a viver conosco. Eu não recebi nenhum cuidado antes (da Olimpíada de Tóquio) porque imaginava que estava tudo bem, mas a minha mente e o meu corpo foram os primeiros a dizer que, na verdade, não”, disse a ginasta no documentário “O Retorno de Simone Biles”, da Netflix.

O estudo da Unicamp, que investigou a saúde mental de atletas e treinadores no esporte brasileiro de alto rendimento, revelou que 14% dos entrevistados já sofreram algum tipo de abuso. Essa porcentagem, conforme a pesquisa, pode estar subnotificada devido ao tabu em torno do tema. 

“É um trauma que não é possível superar. Pensar por essa lógica é materializar uma cicatriz que não tem cura e que possui muitas camadas. É algo que sempre vai ser revivido por situações diversas”, alerta a ex-nadadora Joanna Maranhão. A brasileira foi vítima de abusos do seu treinador quando tinha apenas 9 anos. Ela tornou o caso público em 2008, aos 20, e virou uma das principais vozes no combate à violência sexual e ao abuso infantil, especialmente no esporte. 

Em 2012, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei Joanna Maranhão, que altera o prazo de prescrição para crimes sexuais praticados contra crianças e adolescentes. “Eu ainda continuo aprendendo a lidar com esse trauma. Hoje, a minha atuação profissional é pelo direito dos atletas, para que eles tenham o à Justiça e a algum tipo de assistência. Isso faz muito sentido para mim porque traz Justiça para a minha própria história”, declara.

Para a psiquiatra Cíntia Braga, experiências de vida, sejam elas positivas ou negativas, afetam as formas de interação e podem desencadear quadros intensos de sofrimento metal, como transtornos depressivos e ansiosos. "Lidar com essas lembranças, essas marcas, não é tarefa fácil. É necessário um trabalho de ressignificação e elaboração. Terapia, estratégias de enfrentamento, rede de apoio e, quando necessário, medicação, são bem vindos", sugere.

Preparação dos atletas 

Os Jogos Olímpicos representam o ápice de uma carreira esportiva. O mês de competição, porém, é só um pequeno recorte da trajetória de milhares de atletas, que se prepararam uma vida inteira para aquele momento. Hoje, tal preparação vai além do treinamento técnico e tático, com o psicológico ganhando espaço. 

O Comitê Olímpico do Brasil (COB) garante que realiza o acompanhamento de todos os atletas filiados antes, durante e após as competições. Atualmente, são 17 psicólogos trabalhando com cerca de 130 atletas semanalmente em ações que vão desde atendimentos sistemáticos, avaliações pontuais e um programa de atenção permanente. 

“A preparação psicológica é um processo que funciona desde que se cumpram algumas etapas, que envolvem o primeiro contato, o entendimento do atleta e suas características, seu contexto e seus objetivos. Para os Jogos, vamos com cinco psicólogos e mais cinco enviados pelas Confederações. Quando chega um momento como esse, entendemos que COB e confederações formam um time só”, explica Eduardo Cilio, psicólogo do Time Brasil. 

Entre os atletas que voluntariamente buscam ajuda psicológica, as mulheres aparecem em maior porcentagem: cerca de 60%. Ainda assim, o número de homens que procuram atendimento atualmente é motivo de comemoração para o COB, que afirma que o tabu da saúde mental masculina ainda é grande, principalmente no ambiente esportivo. 

“A Olímpiada é o sonho no nosso esporte, é o maior nível que podemos competir. Claro que existe a ansiedade, a felicidade de representar o Brasil, mas a preparação mental se mantém a mesma para que a performance para a qual a gente vem treinando saia na hora certa”, comenta o nadador minastenista, Eduardo Menezes. 

Durante os Jogos Paris 2024, o COB disponibiliza dez psicólogos para a delegação brasileira, que é formada por 276 atletas. Eles realizam atendimentos presenciais aos esportistas. Além desse grupo, outros profissionais estão disponíveis de forma remota.

Na capital sa, os atletas também contam com o e de um psiquiatra. É a primeira vez em que a delegação disponibiliza um médico dessa especialidade durante a competição. "Isso é muito importante para auxiliar com algum sintoma agudo que possa surgir, além de evitar a automedicação. Porém, isso é algo que sempre precisa ser feito junto com uma equipe multidisciplinar", acrescenta Cíntia Braga.

Tratamento medicamentoso

Apesar de necessária, existem casos em que somente a psicoterapia não é suficiente para tratar determinados transtornos mentais. Nesses, a psiquiatria, com a introdução de medicamentos, é essencial. No mundo esportivo, porém, o uso de remédios nem sempre é tão simples, devido às regras rígidas de antidoping. Para o levantamento da Unicamp, 8% dos atletas afirmaram precisar tomar medicação para tratar distúrbios do sono. Eduardo é um deles e faz uso de um hormônio para conseguir dormir bem. 

“Eu tomo meio comprimido de melatonina, isso é uma dose bem baixa e me ajuda a dormir melhor. Se necessário, faço algumas técnicas de respiração”, relata o nadador olímpico. Para evitar que os remédios psiquiátricos sejam detectados como substâncias ilegais em exames antidoping, o COB precisa entrar em ação e relatar o uso desses alopáticos aos órgãos competentes.

"Ressaca Olímpica"

A pressão por resultados pode afetar a saúde mental antes das competições, mas como lidar quando eles não vêm? Em alguns casos, o pós-olímpico exige ainda mais atenção, uma vez que a ‘virada de chave’ precisa ocorrer de forma rápida. O COB afirma que existem ações pensadas para manter esses atletas saudáveis na chamada “ressaca olímpica”.

“Após as competições, fazemos ações de avaliações de resultados. Pensando em saúde mental, mantemos os atendimentos no período pós-Jogos, até porque termina uma Olimpíada e começa a preparação para a próxima, com diversos compromissos que já envolvem o foco e o pensamento nas vagas. Estamos indo para Paris com a cabeça também em Los Angeles”, explica o psicólogo Eduardo Cilio. 

Mesmo com dados alarmantes e relatos constantes de atletas que lutam para manter uma boa saúde mental, o tema ainda não entrou na pauta do Ministério do Esporte, pasta do Governo Federal que cuida de programas esportivos no Brasil. Questionado sobre ações voltadas para o cuidado psicológico de atletas olímpicos, o órgão afirmou, por meio de nota, que não possui esse tipo de assistência.

“O Ministério do Esporte informa que disponibiliza exclusivamente programas de apoio voltados para o desenvolvimento de atletas. Esses programas oferecem e técnico e financeiro para a evolução esportiva, mas não abrangem outras áreas, como assistência em saúde mental”, conclui o comunicado.

Para a ex-nadadora Joanna Maranhão, todo o e em relação à saúde mental é necessário para que a pressão recorrente nas disputas não afete outras áreas da vida. "É muito fácil o atleta pensar que o esporte é aquilo que o define, mas é parte do que ele (o atleta) é, porque essa fase um dia a. Ter essa perspectiva ajuda a eliminar a pressão e a humanizar esse processo", finaliza.