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Fabrício Carpinejar

Poeta escreve às sextas no Magazine e no Portal O Tempo

OPINIÃO

Armário renovado

'Dou-me conta de tudo o que possu', da dimensão da minha trajetória, do que conquistei no decorrer das décadas'

Por Fabrício Carpinejar
Publicado em 30 de maio de 2025 | 03:00

Ao adquirir uma roupa, eu arrumo todo o meu armário.

Uma peça apenas, e promovo uma revolução.

É como se eu renovasse as minhas gavetas.

Desando a observar o que já tenho, a zelar pelo que estava ali há tanto tempo parado, empoeirado, preterido.

Visito as minhas versões anteriores e me deslumbro com o meu ado.

Há um repertório para tirar proveito.

Formulo combinações, misturando minhas épocas. Valorizo o que estava adormecido. Dou-me conta de tudo o que possuo, da dimensão da minha trajetória, do que conquistei no decorrer das décadas.

Acabo ressignificando o legado com uma calça, uma camisa ou um casaco.

Dedico uma ou duas horas para organizar meu closet, dobrar e esticar os tecidos nos cabides. Ponho para lavar os conjuntos com cheiro de guardados.

Recordo o que não costumava mais usar. 

Talvez o casamento tenha que ser assim.

Quando vivemos uma experiência feliz a dois, redesenhamos a saudade inteira.

O que é velho rejuvenesce. O amargo da rotina torna-se subitamente dócil.

Após um dia bom, você recupera lembranças antigas. Testemunha outra vez como pode se divertir ao lado daquela pessoa.

A esperança se reconecta à memória — elas haviam se distanciado sem que você percebesse.

Você quer ser mais gentil, mais carinhoso, mais atento, já que teve um período agradável. Abriu espaço no guarda-roupa da existência.

Ao improvisar, a a gostar mais dos compromissos de sempre.

É uma vivência um pouquinho diferente que espanta o tédio dos hábitos. Você não se sente mais acomodado, fracassado, desestimulado. Descobre que não faltava amor — era apenas cansaço.

Não precisava de muito. Precisava de quase nada. Lustrou o couro sujo de seus os.

Aceitando algo fora dos planos, retomou a confiança nos projetos a longo prazo.

Permitiu-se namorar, esquecer as preocupações com os filhos e as contas, escapar do eixo das responsabilidades profissionais, das conversas obrigatórias, e voltou a gostar de romance. Voltou a ser um casal.

Apaixonou-se pelo seu par: constatou o quanto ele é engraçado, o quanto é inteligente, o quanto é espirituoso, o quanto você escolheu bem a companhia.

É como desenterrar um tesouro no jardim. Ou mesmo se desenterrar do ostracismo.

Mostra-se atraente como no princípio da relação: apaixonante, possivelmente impossível, apto a quebrar expectativas — a surpreender com um jantar, com uma festa, com um programa cultural. Não importam as circunstâncias: dispõe de coragem de fazer o convite e sair da estrada conhecida.

É se perdendo do óbvio que acontece o autoencontro. Os milagres vêm somente para quem acredita neles.

O infinito é singelo. 

Se você se paralisar nos problemas, não será capaz de interpretar a realidade e desvendar as soluções a um palmo dos olhos. 

Dependemos dessas inofensivas novidades para lembrar o quanto somos felizes junto de alguém.

Basta uma única peça, um único descuido de paz, para reaver a grandeza dos pequenos momentos.