No contexto da investida do governo Donald Trump contra programas de diversidade, a Suprema Corte dos Estados Unidos deu ganho de causa nesta quinta-feira (5) a uma mulher que disse ter sofrido discriminação no ambiente de trabalho por ser heterossexual.

A decisão estabelece precedente e abre brecha para mais processos movidos por reclamações de "racismo reverso" e "heterofobia". O conceito de discriminação, como se entende hoje, aplica-se a grupos minoritários da sociedade, no sentido político da palavra, o que exclui a possibilidade de que pessoas brancas ou heterossexuais sejam prejudicadas unicamente em função dessas características.

O caso analisado pela corte dizia respeito a Marlean Ames, funcionária pública do estado de Ohio. No serviço público desde 2004, em 2014 Ames se tornou a do setor de abusos sexuais do Departamento de Serviços à Juventude, que gerencia centros de detenção para adolescentes, e pediu uma promoção para um cargo superior em 2019.

A promoção foi negada porque os chefes de Ames disseram que ela não tinha perfil de liderança. Mais tarde, o cargo em questão foi dado a uma mulher lésbica que estava no serviço público havia menos tempo e não tinha ensino superior.

Pouco tempo depois, Ames foi removida do cargo que já ocupava, recolocada em uma posição com um salário menor e substituída por um homem gay mais jovem. Mais uma vez, os chefes do departamento justificaram a decisão citando problemas na capacidade de liderança da servidora.

Ela, então, decidiu processar o Departamento de Serviços à Juventude, dizendo ter sido discriminada por ser heterossexual e pedindo compensação financeira. Seu caso se baseava no fato de que a lei americana que proíbe discriminação com base em identidade racial, sexo ou religião não faz distinção se a pessoa que afirma ter sido vítima de preconceito faz parte ou não de um grupo minoritário.

Entretanto, antes da decisão da Suprema Corte desta quinta, casos que apontavam "racismo reverso", "heterofobia" ou similares tinham pouca chance de prosperar na Justiça. Em processos assim, cortes inferiores costumam exigir "elementos adicionais" da pessoa que fazia essas acusações de discriminação reversa -como, por exemplo, que ela comprovasse que as pessoas que tomaram as decisões que a prejudicaram pertencem, elas próprias, a grupos minoritários.

Assim foi com Marlean Ames: a ex-servidora pública ouviu de instâncias inferiores da Justiça americana que, se pudesse provar que seu chefes também eram pessoas LGBTQIA+, ou que outras pessoas haviam ado pelo mesmo preconceito que ela, seu processo teria mérito.

Mas ela não foi capaz de comprovar nada disso -em um recurso, disse que as decisões teriam sido tomadas por influência de um empregado gay, mas a afirmação foi rejeitada porque Ames não havia mencionado isso antes. Assim, seu pedido de indenização foi negado instância após instância.

Até esta quinta, quando o órgão máximo do Judiciário dos EUA reverteu as decisões das cortes inferiores e deu ganho de causa a Ames. A decisão, unânime, reconheceu que a Lei dos Direitos Civis de 1964, que acabou com a segregação no país e que rege casos como esse, não diferencia grupos minoritários ou majoritários.

A Suprema Corte também proibiu tribunais inferiores de exigir os chamados "elementos adicionais", abrindo brecha para que mais processos do tipo tenham sucesso na Justiça. Grupos ativistas conservadores apoiavam o caso de Ames, assim como o governo Joe Biden --o escritório do advogado-geral dos EUA, equivalente à Advocacia-Geral da União no Brasil e responsável por representar o Executivo frente à Suprema Corte, interveio no processo dizendo ser a favor da ex-servidora pública.

A decisão unânime foi assinada pela magistrada Ketanji Brown Jackson, a única mulher negra da Suprema Corte. No texto, ela escreveu que "o Legislador, ao estabelecer proteções para todos os indivíduos alvos de discriminação, não deixou espaço para que os tribunais exijam 'elementos adicionais' de pessoas que pertençam a grupos majoritários".

Em manifestação concordando com Jackson, o juiz Clarence Thomas, único homem negro da Corte e importante representante da ala conservadora do tribunal, ecoou argumentos usados por Trump contra programas de diversidade.

"A regra de 'elementos adicionais' é absurda porque, entre outras coisas, pede que a Justiça entenda que apenas um empregador incomum cometeria discriminação contra aqueles que ele entenda fazer parte da maioria", escreveu Thomas.

"Mas muitas das empresas mais famosas desse país discriminam abertamente os chamados grupos majoritários. Há muito, empregadores americanos têm uma obsessão com 'diversidade, equidade e inclusão'", disse o juiz, utilizando o termo atacado frequentemente por Trump e seu governo.

Em junho de 2023, em uma decisão histórica liderada pela ala conservadora do tribunal, a Suprema Corte vetou o uso de raça como critério em issão de universidades, restringindo severamente programas de ações afirmativas no ensino superior americano.

No Brasil, o Superior Tribunal de Justiça entendeu em fevereiro deste ano que não existe injúria racial contra pessoas brancas e descartou a tese de "racismo reverso".