“Era um lugar bem tranquilo, tranquilo demais mesmo. Não tinha barulho de carros. O que definia Bento Rodrigues eram a tranquilidade, as casas simples e as pessoas humildes”. A recordação é de uma adolescente de 16 anos, obrigada a deixar o distrito atingido pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, no dia 5 de novembro de 2015. Sete anos após a tragédia que vitimou 19 pessoas e deixou rastros de destruição, o vínculo afetivo e algumas poucas memórias resistem à poeira do tempo e ajudam a recontar a vida de uma comunidade destruída pela lama. 

Amanda, nome fictício dado à adolescente, que teme por mais intimidações, tinha apenas 9 anos quando a tragédia ocorreu. Ela, sua irmã e seus pais deixaram o distrito para recomeçar a vida na cidade de Mariana, a cerca de 25 km do local onde viviam. “Eu queria o meu lugar, a minha infância e do jeito que ela era, não cheia de traumas como ficou”, conta a adolescente. A vida pacata no distrito com uma população de 620 habitantes era marcada também pela simplicidade e pela proximidade entre as pessoas. “Eu adorava brincar na rua. Mesmo com o sol quente, eu estava no meio dos meninos jogando bola. Tinha também o pé de manga, onde eu subia e fingia que estava no prédio. Esse pé de manga tem muitas histórias”, completa. 

A árvore frutífera, que, para a adolescente, é um dos símbolos do velho Bento, resistiu à tragédia que despejou 40 bilhões de litros de rejeitos de minério sobre os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, no município de Mariana (MG), e de Gesteira, em Barra Longa (MG). “Ela está lá, firme e forte. E dá frutos ainda, você acredita?”, questiona Amanda. Em apenas 15 minutos, a lama tóxica chegou à pequena localidade, situada a 8 km da barragem que se rompeu, onde vivia a adolescente. Além de mortes e de destruição do meio-ambiente, a tragédia causou a escassez de água, a diminuição da pesca, do comércio e do turismo em várias cidades ribeirinhas de Minas Gerais e do Espírito Santo. Este foi o maior desastre socioambiental do Brasil. 

As lembranças desse dia fatídico são atuais e por vezes ainda emocionam a adolescente. “A gente estava na casa da minha tia (...). A minha madrinha chegou, bateu no portão desesperada e disse que a gente tinha que sair porque a barragem havia estourado. Estavávamos eu e a minha irmã. Eu entrei em desespero”, relembra. A irmã de Amanda tinha apenas 4 anos no dia da tragédia. Hoje, aos 11, Larissa, nome fictício atribuído a ela também por medo de intimidações, guarda poucas lembranças do lugar onde morava com os pais e a irmã. “Eu só me lembro da quadra e da minha motinha”, conta. A quadra, que também resistiu à força da lama, era um espaço de confraternização da comunidade, e a motinha, com as cores vermelho e preto, um brinquedo que ela havia ganhado de sua mãe no Dia das Crianças.  

Tinha um campo e lá tinha uma quadra. A minha mãe sempre ia jogar bola com as mães das minhas amigas. Elas levavam as filhas, e a gente ficava brincando”, recorda Larissa. Apesar da pouca idade, a menina ainda guarda algumas lembranças deste local de encontro da comunidade. Embora vagas, as recordações ficam completas quando ela conversa com a sua mãe, que compartilha histórias sobre como era viver em Bento Rodrigues. “Ela fala muito de lá. Fala também da igreja, que eu fazia bagunça lá em casa”, brinca. 

Conversas que, geralmente, são embaladas por emoções e que se estendem por horas. As lembranças fragmentadas estimulam a curiosidade da menina que, aos finais de semana, costuma visitar o lugar descrito nas histórias contadas pela mãe. “É triste ar e perceber que não tem quase nada e também que minha mãe sofreu aquilo tudo, que ficou preocupada com a gente”, relata. Em cada ida ao velho distrito, o reencontro com alguns desses lugares distantes na memória e com outros que a pouca idade e a tragédia a impediram de conhecer. “Tem algumas casas em pé. Mas, quando a gente foi lá, uma parte só tinha água. Você olhava para os lugares e só conseguia ver água”, descreve. 

Algumas páginas em branco 633t1k

Uma história interrompida. Essa é a definição atribuída por quem teve que deixar Bento Rodrigues devido ao rompimento da barragem de Fundão. “É como se fôssemos umas plantinhas que foram arrancadas e deixadas murchando em outro lugar. Eu me sinto assim, falta algo”, define a estudante de serviço social Rafaela Aparecida Felipe, de 20 anos.  

Para ela, ter que sair do local onde ou parte da infância ao lado dos pais e de dois irmãos foi como se tivessem colocado um final na história de sua família, que ainda estava sendo escrita. “A impressão é de que irão ficar algumas páginas em branco, uma história que não terminou”, completa. Rafaela Felipe teve que deixar Bento Rodrigues ainda aos 13 anos. Ela vivia em uma casa com fogão a lenha e que tinha à frente um gramado, onde ava boa parte do dia ao lado dos amigos.  

“Eles iam lá pra casa, e a gente fazia comidas juntos, almoçávamos juntos, a gente ia para o famoso Bar da Sandra, que tinha lá no Bento, às vezes à cachoeira”, recorda. Apesar da afetividade com cada um desses momentos, as recordações falham diante do tempo e também do trauma pela tragédia. “Às vezes é até difícil lembrar das coisas, até mesmo pelo trauma. A gente esquece, vai apagando muitas coisas da memória. E é triste que nossa história esteja sendo apagada”, lamenta Rafaela Felipe, que acredita que as próximas gerações só poderão conhecer o local onde ou parte da infância e que foi o mesmo onde seus pais viveram por meio de histórias e pelas imagens registradas do distrito. 

Assim como Rafaela, a servidora pública Mirella Regina Lino de Sant’ana, de 24 anos, lamenta que no futuro não poderá visitar ou apresentar o lugar onde viveu para a sua família e para os seus amigos. “É uma sensação muito desafiadora, por falta de palavras melhores. A verdade é que fomos violados e forçados a seguir”, descreve. 

Sant’ana, que também deixou o distrito durante a adolescência, hoje guarda algumas lembranças que se transformaram em saudades. “A gente sempre se reunia para assar uma carne, conversar, era um ponto de encontro. Depois que a lama ou, a gente nunca mais fez isso”, relata. 

O recomeço e o preconceito em Mariana  4c1lg

“Da lama. Aquele ali que é o povo da lama”. O estigma atribuído aos sobreviventes do rompimento da barragem de Fundão coloca às margens as famílias que tentam reconstruir a vida em Mariana. Sete anos após o ocorrido, elas convivem com o preconceito e até mesmo com a culpa da tragédia provocada pelas mineradoras. “Você a, e as pessoas olham torto, fecham a cara. Eu vou de ônibus para a escola, e o povo também fecha a cara”, relata Larissa, de apenas 11 anos. O nome é fictício devido ao medo de intimidações. 

A rotina na cidade onde a família de Larissa recomeçou a vida é muito diferente daquela que eles tinham no velho Bento Rodrigues. Os encontros, as brincadeiras nas ruas e a proximidade com os vizinhos se restringem ao imaginário e aos relatos de quem conheceu o distrito destruído pela lama. “Aqui não tem como ficar saindo, não conheço tanta gente. Eu fico mais na televisão”, relata. 

Os sentimentos de solidão e de exclusão agora fazem parte do dia a dia. Apesar dos anos que se aram, construir novos vínculos tornou-se um desafio diante do preconceito e da violência. “Um menino pegou um palito de algodão doce e ficou me furando. Eles também falam da minha cor, que não gostam de mim”, desabafa. A violência vivenciada por ela é semelhante à que sofre a irmã Amanda, de 16 anos. “Difamação demais, calúnia. Muita gente fala que a gente é ingrato, que deveria ter morrido. Eu tive que aprender a conviver aqui, porque realmente não gostava”, conta Amanda. 

Nos espaços onde frequenta, a receptividade ainda é algo desejado por Amanda. Porém, sem muita expectativa, já que muitos se incomodam com a mudança dos atingidos para a cidade e os responsabilizam por alguns dos problemas de infraestrutura. “Uma menina falou para a colega dela que nós somos ingratos. A menina perguntou, e ela disse que é porque eles ficaram três dias sem água (depois da tragédia). Mas foi a gente que cutucou a barragem e estourou?”, questiona. 

Desde a mudança para Mariana, ela começou a fazer acompanhamento psicológico. Um cuidado que se tornou necessário pela tragédia e pela insatisfação no local onde vive. “E eu fico chateada, porque as pessoas não sabem que a gente ainda sofre. De que adianta a gente ter isso e aquilo? E o trauma que ficou?”, conclui. 

Novo Bento Rodrigues 6l5524

O novo Bento Rodrigues, que é construído pela Fundação Renova, ainda segue sem previsão de término. As obras que se iniciaram em 2016, com a escolha e a compra do terreno, ainda não estão prontas. A expectativa é que 121 das 162 casas já contratadas estejam concluídas até o final deste ano. Apesar disso, a Fundação Renova pretende que as famílias atingidas possam começar o processo de mudança em janeiro do próximo ano.  

Para Amanda, esse é um convite indigesto, já que a entrega do novo distrito deverá ser feita sem a conclusão das obras e em configuração muito diferente daquela do velho Bento. “Não tenho vontade porque não vai ser a mesma coisa. Não tem como voltar atrás”, lamenta. A Renova, no entanto, aponta que todo o processo de planejamento e de execução dos projetos foi realizado junto aos atingidos. 

No dia 19 de outubro, a Fundação e a Prefeitura de Mariana am um acordo para garantir o funcionamento de serviços essenciais, como o tratamento de água e esgoto, transporte público, limpeza urbana, iluminação e segurança. O termo foi oficializado com objetivo de permitir que os atingidos organizem a mudança já no primeiro mês do próximo ano. 

A cerimônia contou com a presença do prefeito Ronaldo Alves Bento (PSB) e de representantes da organização. Os atingidos, que não foram convidados, chegaram de surpresa e fizeram questionamentos aos presentes. O prefeito e os representantes não responderam e encerraram a cerimônia antes do previsto.