Dos 12 distritos de Ouro Preto, na região Central de Minas Gerais, Antônio Pereira é o que menos recebe turistas. A principal explicação são impactos da mineração no local que teve as bases firmadas justamente ao redor da atividade. Ao chegar na comunidade, que tem mais de 300 anos e é lar de cerca de 3,5 mil pessoas, é impossível não notar a grande pobreza e a sensação de abandono do local. Ruas estreitas, sujas e mal cuidadas, casas humildes e sem acabamento e muita poeira no ar. Não importa o lado que você olhe, no horizonte, o que se vê são serras esburacadas pela mineração, barragens ando por obras de segurança e, consequentemente, caminhões enormes transitando de um lado para o outro em meio a nuvens de poeira.
Nos bairros mais próximos da enorme estrutura, segundo os moradores, o tempo de “chegada da lama” varia entre 6 e 30 segundos, cenário que aterroriza a população local desde 2019, quando a barragem Doutor, da Vale, teve o seu nível de emergência aumentado para 2. Na ocasião, 180 famílias foram removidas de suas casas. Até hoje, nos pontos mais baixos, muitos têm como vizinhos ruínas de casas e estabelecimentos, com janelas e telhados removidos: um lembrete diário de que ali, logo ao lado, a lama poderia engolir tudo.
Hoje, ando por obras de descomissionamento, a barragem voltou para o Nível 1, porém, o medo e os impactos da mineração continuam afetando a saúde física e mental de todos. Nascida e criada no distrito, a funcionária da creche local Ivone Pereira Zacarias, de 54 anos, era muito pequena quando a mina foi instalada por lá, porém, conta que, segundo relatos, na época a população não foi informada sobre os riscos de se morar logo abaixo do que ela chamou de “monstro”.
“A Vale colocou esse monstro em cima da nossa cabeça e acabou com nossas vidas. Eu não me sinto mais segura de morar aqui”, protesta. Ela conta que, desde a remoção de parte dos moradores de sua casa, o distrito lutava pelo direito de ter uma assessoria técnica, o que foi conquistado nos últimos anos na Justiça.
“Graças a Deus agora temos o instituto Guaicuy para ajudar nas nossas causas. Todo mundo daqui é atingido, está inável viver, é muita poeira, muito barulho. O pó está contaminando tudo, não existe casa limpa. As roupas pegam esse pó quando colocamos para secar e, ao vestir, nosso corpo todo coça. Nossa água para consumo está cheia de barro. Aqui está parecendo uma cidade fantasma. Era uma comunidade que a gente tinha orgulho de viver, e hoje nós estamos presos aqui. Até os animais, que antes ficavam pastando na serra, agora estão soltos nas ruas, espalhando lixo, pois a serra foi cercada. Até onde eram nossas cachoeiras está fechado”, protesta dona Ivone.
A faxineira Rosemeire Guimarães da Silva, de 50 anos, vive há 27 em Antônio Pereira, terra natal de seus avós. Lá ela constituiu família e, hoje, vê do quintal da casa de seu filho, a barragem que ameaça todos os dias a segurança do local. “Quando subiu o nível, a gente ficou desesperado. Depois falaram que não tinha mais risco, mas como se diz, onde tem barragem, não tem nada seguro. Quem vai comprar uma casa em um lugar assim? A Vale só fala que ela (barragem) está sendo monitorada. Mas as outras, que se romperam, não estavam sendo monitoradas também?”, indaga.
Segundo ela, o medo fica maior sempre que o período chuvoso se aproxima. “A gente fica com a mente perturbada, ainda mais agora nesse tempo que é meio chuvoso. Apesar de que não é só a chuva, fiquei sabendo que o tempo seco também é perigoso, pois o sol quente pode rachar a terra da barragem”, diz, enquanto olha para a estrutura, a mulher que carrega nos braços o neto de 2 anos.
Aminthas Gonçalves de Oliveira, de 67 anos, trabalhou a vida inteira com maquinário pesado na mineração e chegou a morar no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, engolido em 2015 pelo rompimento da barragem de Fundão, da Samarco. Ele reclama principalmente dos impactos ao meio ambiente.
“A poeira degradou a serra, as nascentes de água que antes chegavam aqui. Acabou com tudo! Eles estão querendo invadir o nosso lugar, mas, quando eles chegaram, a gente já estava aqui”, conclui.
Questionada sobre a afirmação dos moradores de que a empresa teria cercado parte da serra e das cachoeiras do distrito, a Vale ainda não se manifestou.
Problemas afastam turistas e adoecem moradores 1l366x
De acordo com o coordenador-geral da Assessoria Técnica Independente de Antônio Pereira e vice-presidente do Instituto Guaicuy, Ronald Guerra, a chamada “Lama Invisível” dessas barragens em risco certamente afetam o turismo nestes distritos e municípios abaixo das estruturas.
“Como já ocorreram esses rompimentos de barragens, a população não tem muita confiança. Isso afeta na segurança das pessoas que deixam de visitar o local. Isso pode afetar grandemente toda a relação de vida e o próprio patrimônio dessas pessoas que moram no entorno”, afirmou.
Também nascido no distrito, Wilson Nunes, de 67 anos, garante que a mineradora está afetando a saúde de toda a população. “Temos várias pessoas com problemas psicológicos. A poeira cessou um pouco nesses últimos dias por causa da chuva, mas ainda assim temos muitas pessoas idosas e crianças com bronquite e outros problemas respiratórios, já sobrecarregou o posto de saúde”, diz.
Ainda segundo o idoso, a população se sente abandonada pela Prefeitura de Ouro Preto. “Ela não nos ampara, não participa dos nossos movimentos. A questão é que eu não sou contra nenhuma mineração, sei que é o mal necessário, para gerar emprego, renda, desenvolvimento. Mas, acima de tudo, nós precisamos que as mineradoras respeitem os nossos direitos”, completou Nunes.
Sobre o problema da poeira, a Vale afirmou que vem adotando medidas para mitigar estes impactos. "A empresa intensificou a aplicação de supressores de poeira e polímeros, umectação de vias, revegetação de taludes e recuperação de áreas degradadas, visando a mitigar a emissão de poeira eventualmente decorrente das suas áreas operacionais, especialmente durante a estação seca. Além disso, a Vale possui programas de monitoramento da qualidade do ar, em cumprimento à legislação ambiental vigente", destacou.
Entretanto, um vídeo feito pelos moradores na tarde da última sexta-feira (8 de dezembro) mostra que, mesmo após o início do período chuvoso, quando venta, todo o distrito acaba coberto por uma gigantesca nuvem de poeira.
Orgulhoso de sua terra natal, Wilson Nunes fez questão de levar a reportagem em alguns dos pontos turísticos da cidade, como a Igreja Queimada, datada do século XVIII, onde, após o teto desabar em um incêndio, os moradores aram a enterrar seus familiares no interior do templo religioso, tradição interrompida nos últimos anos após o tombamento do local.
Outro ponto importante, mas, assim como a igreja, pouco visitado por turistas no dia-a-dia, é a gruta do Santuário de Nossa Senhora da Lapa. "Aqui é um lugar que, se você tem fé, vai sair renovado", diz Nunes antes de adentrar em um dos salões da gruta para mostrar, visivelmente emocionado, a imagem de Nossa Senhora que apareceu há 301 anos no local. Da santa "esculpida" na pedra, escorre uma espécie de óleo, que nunca secou segundo os moradores, e que os fiéis am no corpo em busca de cura e proteção.
A reportagem de O TEMPO procurou a Prefeitura de Ouro Preto, que recebeu, até novembro de 2023, quase R$ 92 milhões da chamada Compensação Financeira pela Exploração Mineral (Cfem), e questionou sobre investimentos em políticas públicas para o distrito de Antônio Pereira e sobre os problemas de saneamento e poluição, mas, até a publicação da reportagem, o município não tinha se posicionado.
Obra em barragem só vai até 2029 512t2h
Ouvida pela reportagem, a mineradora Vale informou por nota que o processo de descaracterização da barragem de Doutor tem previsão de conclusão em 2029. A empresa foi indagada também sobre um vertedouro que, segundo os moradores, foi construído mas não estaria funcionando.
"Importante ressaltar que o extravasor (vertedouro), o fundamental para a evolução da descaracterização da estrutura, foi concluído em novembro deste ano e entrará em operação de forma gradual e controlada. Além disso, neste ano, concluímos o reforço da fundação do dique 1 da barragem e estão em andamento as obras de construção dos canais de drenagem do reservatório, aderentes ao cronograma para conclusão obra", destacou.
A Vale informou ainda que "não tem medido esforços para apoiar a comunidade de Antônio Pereira", sendo que o Plano de Compensação e Desenvolvimento do distrito tem um orçamento de R$ 55 milhões.
"Diversas entregas já foram realizadas e outras em andamento, como o programa 'Capacitar', que busca contribuir para a ampliação da empregabilidade, diversificação econômica e aumento das possibilidades de geração de renda no distrito, e também o programa 'FortaleSer', que teve início em junho de 2023, com o objetivo de gerar sustentabilidade e empoderamento de entidades sociais", alegou a mineradora.
A Vale também afirmou estar atuando na revitalização e reforma de espaços públicos do distrito, além de ter assinado, em novembro, um Termo de Pactuação com a Prefeitura de Ouro Preto para fortalecer políticas públicas sociais e de saúde no distrito, com recurso financeiro de cerca de R$ 2,5 milhões.
"Até o momento, foram celebrados acordos de indenização individual contemplando 534 pessoas em função da evacuação preventiva, com valor total de cerca de R$ 149 milhões", concluiu a mineradora.