“É preciso mostrar que, no Brasil, a pobreza tem cor. O analfabetismo, os homicídios de jovens, os estudantes universitários têm cor. Ah, e o amor também tem cor”. É assim que o pesquisador Rodrigo Ednilson de Jesus conclui um artigo em que, entre outros temas, examina como, de uma perspectiva heterossexual, mulheres negras são mais vezes preteridas e excluídas da possibilidade de estarem em relações românticas.
No texto – publicado no livro “Vozes Negras em Comunicação: Mídia, Racismo, Resistência” (Autêntica, 2019) –, o autor pondera que casais inter-raciais são minoria no país. Para se ter uma ideia, o Censo Demográfico de 2010 indicou que aproximadamente 70% dos brasileiros se relacionam com pessoas do mesmo grupo étnico – dados que desmentem a ideia de que “o futuro será mestiço”, fruto do que estudiosos apontam como mito da democracia racial, que prevaleceu no país no século XX. Mas, ainda que esses arranjos conjugais sejam minoritários, é possível observar como, ao mesmo tempo em que, em termos absolutos, os homens pretos são aqueles que mais se unem às mulheres pretas, também é verdade que eles são os que, proporcionalmente, menos se unem a mulheres de seu grupo de cor.
Trata-se, portanto, de um fato que “ajuda a entender, ao menos em parte, o fenômeno da solidão da mulher negra”, aponta Ednilson de Jesus em “O amor tem cor? O uso do Facebook como estratégia de letramento racial e reexistência”. A observação é acompanhada de outro estudo, que indica como a taxa de celibato das mulheres negras é quase o dobro daquela de mulheres brancas.
Para Ana Cláudia Lemos Pacheco, professora de sociologia da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), “essa solidão afetiva está relacionada diretamente ao racismo e ao sexismo estrutural, dois pilares de opressão que recaem principalmente sobre essa parcela da população”, examina. “É algo que tem a ver com uma história de ado colonial e escravagista, mas que também tem a ver com essa reelaboração e reprodução de várias imagens, de vários discursos, de vários estereótipos que são ainda muito comuns na sociedade brasileira atual”, prossegue a autora do livro “Mulher Negra: Afetividade e Solidão” (EDUFBA, 2013), que é fruto de sua tese de doutorado.
Ana Cláudia lembra que, em seus estudos, verificou que a sensação de abandono é muito presente no cotidiano dessas mulheres, sejam elas ativistas ou não, tenham elas experimentado algum tipo de ascensão social ou não. “Essa exclusão impacta muitas de nós em nossas experiências afetivo-sexuais, mas também em diversas outras dimensões da vida”, complementa. Isso porque, avalia a autora, ainda prevalece a ideia de que “a mulher negra é boa para o servir, para o cuidar, para o estar à disposição do outro, inclusive com o seu corpo, mas que ela não é boa para (ser) uma parceira ideal, para constituir um relacionamento duradouro e para (estar incluída em) um projeto de vida que ultraasse essas representações de subalternidade e servidão”, examina.
Mudança. Desde o lançamento do livro em que traz reflexões e apontamentos sobre o assunto, a socióloga Ana Cláudia Lemos Pacheco não apenas viu o debate sobre o fenômeno da solidão da mulher negra crescer e se popularizar, como também percebeu um esforço coletivo em revisitar essa realidade.
“O que percebi nos últimos sete anos é que, juntas, aprendemos a reelaborar esse sentimento e a criar novas formas de nos relacionarmos afetivamente, o que tem contribuído para uma positivação da imagem das mulheres negras, sobretudo para as mais jovens”, observa.
Solidão nos amores, nas lutas e nas dores
“Tem um ditado, que já foi muito popular, que diz: ‘Branca para casar, preta para fornicar’. Ele traduz bem uma lógica ainda bastante comum, que me faz acreditar que, para uma mulher negra, o amor é um privilégio”, critica a pedagoga e mestre em gestão social Benilda Brito. Ela lembra que, em parte, esse olhar que inferioriza a mulher negra, colocando-a apenas como “um objeto de divertimento”, explica o porquê de esse grupo demográfico, que representa 27,8% da população brasileira, ter sofrido 73% dos casos de violência sexual registrados no Brasil em 2017, enquanto as mulheres brancas foram vítimas em 12,8% dos casos. Os dados são do relatório “A cor da violência: uma análise dos homicídios e violência sexual na última década”, que se debruçou sobre dados do Sistema Único de Saúde (SUS) e que foi divulgado no ano ado.
Integrante do coletivo belo-horizontino Nzinga, que defende pautas do feminismo negro, Benilda acrescenta que em diversos outros aspectos as mulheres negras se percebem sozinhas. “Há uma solidão afetiva, mas há também uma solidão política ou na pauta de criação dos filhos”, examina.
“Imagine que uma mãe de família, que cria seus filhos sozinha, precisa também se desdobrar para lutar contra o racismo e para proteger seu filho, que pode ser uma vítima do genocídio da juventude negra brasileira. E, se ela perder (seu rebento), mesmo na dor, não vai ser amparada”, avalia, em menção ao crescente número de homicídios de pessoas negras no país evidenciados, por exemplo, por estudos como o Atlas da Violência de 2020.
O documento demonstrou que 75,7% das vítimas de assassinato em 2018 eram pretos ou pardos. Isso significa que, em uma década, o número de mortes de indivíduos desse grupo social aumentou 11,5%, enquanto o de não negros caiu 12,9%. Conforme inquérito do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2018, 55,8% dos brasileiros se autodeclaram negros.
“Costumo dizer que, entre as mulheres negras, não há sororidade (conceito essencial no movimento feminista para estimular o apoio entre as mulheres), mas ‘dororidade’. Somos unidas pela dor e só podemos contar umas com as outras”, observa Benilda. Ela pondera, contudo, que nas relações não heterossexuais essa solidão tende a ser diminuída. “No caso das lésbicas, há certa cumplicidade. Tem certo respiro. Isso porque muitas de nós, embora estejamos também sozinhas, criamos redes e nos apoiamos”, reflete.
Independência. A jornalista e livreira Etiene Martins, à frente da livraria Bantu, especializada em autores negros e negras, concorda que a solidão das pessoas pretas, especialmente das mulheres, se dá em diversas dimensões da vida.
“Se ela consegue entrar em uma faculdade ou ar um cargo alto, geralmente vai se ver sozinha. Quantas vezes escutamos sobre a primeira negra a ocupar certo cargo, a ter certa posição de destaque? Ocorre que esta também é uma forma de violência, de desamparo e que vai ser instrumento para apagar suas próprias demandas”, observa, lembrando que exceções costumam ser citadas como exemplo de superação do racismo em um discurso que se esquece de como este é um problema estrutural.
Etiene ainda assinala que, por conta desse fenômeno, a conquista da autonomia e da independência financeira significam, para muitas mulheres negras, ainda mais solidão. “Nesses espaços majoritariamente brancos, como em universidades ou na diretoria das empresas, elas normalmente não têm espaço para falar de suas questões e não encontram o acolhimento que encontrariam em espaços em que teriam o apoio dos seus, mas de onde tiveram que se afastar por terem que dedicar tempo a esses outros ambientes e conseguirem ser bem-sucedidas”, reforça.