O escritor belo-horizontino Fernando Sabino viveu até um dia antes de completar 81 anos. Ao envelhecer, preferiu continuar criança. Foi ele quem escreveu o próprio epitáfio: “Aqui jaz Fernando Sabino, nasceu homem, morreu menino”. Desde 2004, ano de sua morte, a capital mineira também envelheceu. A população idosa da cidade dobrou, ando de 204.573 pessoas, em 2000, para 460.962, segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Hoje, a cada cinco moradores de BH, um já ultraou os 60 anos. Para que os cerca de 20% dos habitantes da capital possam, assim como Sabino, envelhecer sem perder a sensibilidade, a prefeitura decretou a criação de nove Conselhos Municipais de Cuidado e Defesa da Pessoa Idosa. O objetivo é aproximar a rede de proteção dos moradores 60+.

Os conselhos deverão compor a vizinhança, com as portas abertas de segunda a segunda, em regime de plantão. Nesses espaços, o idoso, o familiar ou o cuidador será atendido por cinco conselheiros, formados nas áreas da Saúde, Ciências Humanas ou Ciências Sociais Aplicadas (como Serviço Social ou istração). "O conselho será um espaço seguro para a pessoa idosa buscar orientação e acompanhamento em caso de violação de direitos. O atendimento será efetivo: o conselheiro que receber a denúncia entrará em contato com os órgãos competentes, como o Ministério Público, a Defensoria Pública ou uma delegacia", explica a subsecretária de Direitos Humanos da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), Luana Magalhães.  

O Executivo autorizou um gasto adicional de até R$ 4 milhões no orçamento anual para viabilizar a implementação do projeto, considerado pioneiro no Brasil. Segundo a prefeitura, a licitação para a contratação da banca examinadora, que selecionará os primeiros conselheiros, será aberta até junho. A subsecretária Luana Magalhães explica que o processo seletivo deve garantir a competência dos profissionais que lidarão diretamente com os idosos de BH: “Eles terão contato direto com a população, por isso é importante que sejam qualificados e possuam conhecimentos sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), o Sistema Único de Assistência Social, o Estatuto do Idoso, e outras noções de direitos humanos”.

Nos conselhos de cada regional, a comunidade poderá esclarecer dúvidas sobre direitos e fazer denúncias, como maus-tratos ou fraudes. Os conselheiros também serão proativos, identificando problemas e propondo soluções para os moradores. Os idosos, no entanto, têm sua capacidade plena respeitada e podem tomar decisões de forma independente, ao contrário das crianças e adolescentes, que estão sob a tutela do município por meio dos Conselhos Tutelares.

O equipamento vai ser útil à Helenice Natalina Silva, coordenadora da Casa de Apoio Chico do Vale, no bairro Ouro Preto, na região da Pampulha. Neste mês de março, ela precisou registrar um boletim de ocorrência para relatar o caso de Alice* [*nome alterado para preservar a vítima]: a idosa de 78 anos, diagnosticada com Alzheimer, foi abandonada pela família em uma unidade de saúde da capital. A casa de apoio a acolheu após a neta de Alice um termo de responsabilidade — desde então, porém, nenhum familiar retornou o contato ou atendeu à porta de casa. “É muito triste e complicado. Os idosos abandonados entram em depressão muito fácil. Eles são vulneráveis, se sentem frágeis, e deprimem. Contamos com psicólogo, apoio religioso, arteterapia, mas não é fácil a recuperação”, lamenta. 


A coordenadora Helenice Natalina Silva, durante um atendimento na Casa de Apoio Chico do Vale / Foto: Alex de Jesus / O TEMPO

Antes que a família desse um retorno sobre a situação da idosa, Alice adoeceu novamente. Ela está de volta à situação inicial, sozinha em um leito hospitalar. “Compreendi que não posso julgar a família. Cuidar de um idoso, que precisa de quatro cuidadores, um enfermeiro, medicação, não é barato. A maioria só tem o valor da aposentadoria, o que não basta. Precisamos, e muito, da ajuda das autoridades“, continua Helenice. Podendo contar com um futuro Conselho de Cuidado e Defesa da Pessoa Idosa em sua regional, a responsável pela casa de apoio planeja pedir ajuda não só para fazer denúncias, mas também para casos de direitos negados.

Após a seleção dos conselheiros, caberá ao Executivo fornecer a estrutura física, o e istrativo e logístico, além da assessoria técnica e jurídica para cada unidade. A prefeitura não informou prazos para as etapas do processo.

Violência contra idosos salta 39% em quatro anos em Minas 3a4p50

O boletim de ocorrência de abandono em nome de Alice é apenas um entre milhares de casos. Dados do Observatório de Segurança Pública de Minas Gerais indicam um aumento de 39% nos registros de violência contra idosos em quatro anos no Estado. O número saltou de 76.491 registros em 2020 para 106.566 em 2024, considerando mais de 170 tipos de crimes. Os mais comuns são estelionato (32%), furto (28%) e ameaça (13%). Nos últimos dois anos, a capital manteve a média anual de 20,5 mil registros de crimes contra idosos. O número equivale a quase 56 denúncias por dia em BH.

Apesar de alguns desses casos serem inusitados — como o de uma idosa de 67 anos, derrubada ao chão e agredida por ladrões de correntinha no Belvedere, na região Centro-Sul, no início de março —, a maioria dos crimes ocorre devido a abusos cometidos por familiares, cuidadores ou outras pessoas próximas, como afirma a delegada Juliana Califf, chefe da Divisão Especializada em Atendimento à Mulher, ao Idoso, à Pessoa com Deficiência e Vítimas de Intolerância (Demid). “Os idosos são um grupo mais vulnerável. Muitas vezes, por dependência ou falta de malícia, caem em golpes praticados por pessoas em quem confiam. Sofrem nas mãos delas. A maior parte dos suspeitos são familiares ou pessoas próximas”, detalha.


Casa de Apoio Chico do Vale, em BH / Foto: Alex de Jesus / O TEMPO

Segundo a delegada, esse é, inclusive, um dos motivos da subnotificação da violência. “Muitas vezes, é difícil para o idoso entender que está sendo vítima de abuso. Ele costuma acreditar no suspeito, duvidar que essa pessoa faria algo para prejudicá-lo ou, então, está dependente. A polícia tem feito campanhas de conscientização, mas é difícil chegar às casas”, explica. Por meio dos Conselhos de Idosos, logo, essa denúncia pode ser acelerada.

Os registros de maus-tratos já vêm aumentando. No Estado, cresceram 31% de 2020 a 2024 — de 468 para 612 denúncias. Para o demógrafo e especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), Rodrigo Caetano Arantes, aproximar as políticas públicas de qualidade de vida dos idosos é pensar no futuro da capital. “É um acerto da prefeitura colocar esses conselhos próximos às pessoas idosas, um espaço onde será possível denunciar e solucionar diferentes tipos de violência, seja física, psicológica ou financeira. Porque, sim, é preciso provocar: a população está envelhecendo, mas com qualidade?”, questiona.

“Envelhecer é uma conquista da sociedade”, diz especialista  6k4w6b

O demógrafo Rodrigo Caetano Arantes avalia que a tendência de inversão da pirâmide etária é inegável, uma vez que os avanços científicos prolongaram a expectativa de vida humana, enquanto as famílias estão optando por ter menos filhos. O novo perfil populacional, segundo ele, exige políticas públicas em diversas áreas da cidade, como saúde, lazer e mobilidade. “Envelhecer é uma conquista da sociedade. Porém, isso precisa vir acompanhado de qualidade de vida. Um envelhecimento ativo e saudável se constrói diariamente, até mesmo por meio do cultivo de ciclos sociais positivos, ao contrário do abandono”, afirma Arantes, que também é ex-presidente do Conselho Estadual do Idoso de Minas Gerais (CEI-MG).

De acordo com a subsecretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), Luana Magalhães, facilitar o o dos idosos às políticas assistenciais é uma prioridade da capital diante do envelhecimento da população. “[A criação dos conselhos] foi um pedido do ex-prefeito Fuad Noman. Não existe em outra cidade do país algo parecido; estamos sendo vanguardistas nesse modelo de cuidado. Quando falamos sobre o envelhecimento da população, precisamos preparar a cidade e os serviços públicos para as demandas desse novo perfil etário”, concorda.

Violência contra idosos: como denunciar? h4h11

  • Disque Denúncia 181;
  • Disque Direitos Humanos 100;
  • Na Delegacia Especializada de Atendimento à Pessoa com Deficiência e Idoso, em BH — rua Rio Grande do Sul, 661, Barro Preto.
  • Ou na delegacia de Polícia Civil mais próxima. 

Os sete crimes que mais vitimam idosos em Minas Gerais 5x5u4w

Ano de 2024

  • Estelionato: 33.949 registros (31,8%)
  • Furto: 29.805 registros (27,9%)
  • Ameaça: 13.475 registros (12,6%)
  • Lesão corporal: 4.420 registros (4,1%)
  • Dano: 4.093 registros (3,8%)
  • Vias de fato / Agressão: 3.949 registros (3,7%)
  • Roubo: 2.578 registros (2,4%)
    Total de boletins de ocorrências no ano: 106.566

Fonte: Observatório de Segurança Pública de Minas Gerais - Sejusp