Um dos elementos mais interessantes de "Wicked" é a questão da mudança de perspectiva, num tempo em que há uma grande disputa de narrativas devido à bipolarização política e às redes sociais. Num breve resumo, podemos dizer que o filme, em cartaz nos cinemas, é a versão da bruxa má do Oeste para os acontecimentos que culminaram em sua morte, nas páginas do clássico "O Mágico de Oz". de L. Frank Baum.

Vale lembrar que a bruxa surge brevemente como um troféu para Dorothy chegar até o grande mágico da terra de Oz e pedir ajuda para retornar para casa. A proposta do roteiro, baseado em peça de sucesso na Broadway, é pôr em discussão questões ligadas ao preconceito, racial e social fundamentalmente, a partir justamente de algumas ausências e omissões presentes na história original, publicada em 1900.

Kansas, terra original de Dorothy, é preciso dizer, está localizada no centro-oeste americano e é um dos estados mais segregados do país. Em sua jornada pela estrada de tijolos amarelos, não há a representação de qualquer outra raça, algo reforçado pelos contrastes - a bruxa má é feia e a boa, que tem uma pele muito branca, é linda. Não por acaso, Michael Jackson e Diana Ross comandaram uma versão black em 1978, com "O Mágico Inesquecível".

Elphaba, vivida pela atriz negra Cynthia Erivo, já nasce num mundo discriminatório, devido à pele esverdeada. A crítica em forma de metáfora é óbvia, contrapondo-se à brancura e ao brilho estampados em Glinda, interpretada por Ariana Grande. Tudo o que acontece na Universidade de Shiz é um ataque sucessivo à dignidade de Elphaba, para que, ao final, ela seja tachada de bruxa.

Uma das cenas mais impressionantes é quando, a partir das maquinações de Glinda, ela aceita vestir uma roupa negra dos pés à cabeça, bem diferente do colorido usado por outros alunos, durante uma grande festa. A humilhação sofrida por Elphaba nos remete imediatamente a "Carrie, a Estranha" (1976), filme de terror em que uma garota sensitiva transforma uma formatura num banho de sangue.

Elphaba tem muito das características de Carrie, uma garota reprimida pela família que sofre bullying dos colegas e que, ao descobrir seus poderes, acaba utilizando-os de forma descontrolada nos momentos de pressão e raiva. "Wicked" também bebe claramente na fonte dos filmes de escola, em que a aluna nerd que tenta se enturmar é boicotada pela mais linda e rica (porém, afetada e sem muito intelecto).

Há ainda ecos de "Cinderela", com a filha desprezada pelos pais, "Malévola", com a garota amargurada após ser enganada, e até de "Namorada de Aluguel", em que a estranha dança da garota nerd é imitada por todos depois de ser "aprovada" pela líder. Todos eles são produções que discutem, de certa maneira, questões sobre hierarquias sociais, ponto também muito atacado por "Wicked".

O roteiro amplia a discussão sobre manipulação política presente no final de "O Mágico de Oz", em que o líder da cidade esmeralda -  na pele de Jeff Goldblum - estabelece um poder autoritário, exibindo os símbolos dos governos totalitários, como grandes estátuas e palacetes, e o mais importante: a eliminação completa de todos aqueles que fizerem qualquer tipo de objeção.

Todos esses ingredientes, como bruxas, reinos em perigo, protagonistas de boa índole e uma grande mensagem moral, além de muitas cenas musicais, apontam para um texto bem assentado no conto de fadas, num universo que a Disney sempre dominou. A partir do clássico de Baum,  "Wicked" é o filme disneyano que o império de Mickey Mouse nunca fez, e com o viés feminista das produções atuais.